A CIDADE DO POETA
Fernando Pessoa
O Filme do Desassossego de João Botelho está de momento em tournée, apenas exibido numa rede de salas de espectáculo e de cineteatros espalhada pelo continente e pelas ilhas, traz um roteiro alternativo, algo novo à forma como os espectadores experienciam o cinema. Este realizador procura explorar novos territórios nunca antes explorados em Portugal, de forma a projectar o cinema português e torná-lo competitivo com o cinema estrangeiro que domina as salas de cinema portuguesas.
“Já chega de salas de coca-colas, perdemos as salas todas. No centro do Porto, não há uma sala de cinema; em Lisboa, só em centros comerciais.”
João Botelho
in revista Ípsilon
Fui vê-lo ao novo teatro do Bairro, em Lisboa. Antiga rotativa do “Diário Popular”, a sua reconstrução foi obra do arquitecto Alberto Souza de Oliveira, que teve como premissa "preservar a arquitectura industrial do espaço".
"Ficámos sem salas para os filmes que queremos vender (…) A ideia é esta ser uma sala de resistência do cinema português (…) dos filmes que não se enquadram nas salas actuais.”
Alexandre Oliveira in Público
Entrei e, depois do foyer da bilheteira, percorri um pequeno túnel escuro que terminava num espaço também escuro e cinzento, mas que contrastava pela sua amplitude, com grande pé direito. As diferenças de cotas definiam os usos do espaço: a zona do bar, que era quase uma varanda para a área do palco, afundado, com uma plateia que podia albergar até mais de cem espectadores. Sentei-me numa cadeira e durante noventa minutos, entreguei-me ao desassossego de uma Lisboa Pessoana.
Fernando Pessoa ia ao cinema! Segundo o investigador pessoano e organizador da edição do "Livro do Desassossego" Richard Zenith, existem textos inéditos dele sobre cinema.
“Serei sempre da Rua dos Douradores, como a humanidade inteira.”
Bernardo Soares
Livro do Desassossego
Pessoa criou Bernardo Soares, um quase heterónimo , a personagem principal deste filme, que espelha a vida quotidiana do escritor na sua amada Lisboa. João Botelho, numa audácia transgressora, transfere essa construção da cidade para a actualidade. Uma actualidade boémia, cheia de contrastes sociais, ironias, surrealismos, medos, solidão e uma música que se espalha desde a rua onde Bernardo vive, até à cidade, “até ao mundo inteiro”.
O realizador evoca inúmeras referências da história do cinema neste filme, desde Griffith até Godard, não se esquecendo das características principais do cinema português como a forte ligação ao texto, mais do que à imagem, à luz e às sombras mais do que à montagem, à composição mais do que à história em si.
“Nunca houve um génio criador que se identificasse tanto com o coração da cidade que o viu nascer, com a infinidade de gentes com quem se cruzou e que descreveu com ‘o olhar de Deus’, numa Lisboa centro de um mundo sem centro. Não é assim o mundo hoje? ‘A minha pátria é a língua portuguesa.’Esta frase do Livro do Desassossego que é “a nossa maior invenção desde as Descobertas’, levou-me a enfrentar um mar de textos transformado numa obra universalmente conhecida, armadilha de um génio, puzzle perfeito e genial porque todas as soluções são diferentes e nenhuma é definitiva. (…) Bernardo Soares, um homem contemporâneo, de aspecto normal, indecifrável do comum dos mortais, mas com a angústia e o tédio desesperado de um funcionário modesto, e Lisboa uma cidade misteriosa, labiríntica e profunda, de inquestionável beleza e luminosidade.’Oh, Lisboa meu lar!’. Todos os outros personagens e todos os incidentes que os envolvem são, na vertigem dos sons das frases que os fazem existir, parte do desassossego do ano 2010 da nossa era.”
João Botelho ,Julho de 2010
in site oficial do Filme do Desassossego
Neste filme Lisboa faz-se de recortes iconográficos (Terreiro do Paço, Elevador de Santa Justa, etc.) mas também de colagens sobrepostas que criam paisagens surreais de contornos fantasmáticos e arrepiantes num quarto de uma casa na Rua dos Douradores.
Para não correr o risco de representar a Lisboa de Pessoa como um postal para turistas, Botelho, procurou diluir essa ideia através de vários efeitos que contrastam com esses famosos roteiros, que o poeta percorreu inúmeras vezes, como o Terreiro do Paço e o Cais das Colunas. Por exemplo a cena em que a personagem está em contraluz em relação a essa paisagem é atenuada com Lula Pena a cantar “o Criador de Argonautas”.
Evidentemente não podia omitir a Rua dos Douradores, “aquela rua miserável e pequenina que foi grande parte da vida dele”.
Mas há outros exemplos em que procurou desfazer a ideia do postal bem feito, como a cena na da Igreja de S. Domingos, em que Bernardo evidencia a sua solidão (a solidão de Pessoa) - “Onde está Deus, mesmo que não exista” - num dos maiores palcos da inquisição portuguesa, que sofreu um incêndio e onde se faziam autos de fé, sendo desta forma um pesado legado cultural de Lisboa.
No filme Fernando Pessoa contracena com ele próprio, ao encontrar Bernardo Soares num bar escondido no Cais do Sodré, que mais tarde lhe entrega o seu manuscrito, como se fosse restituída ao verdadeiro autor como obra de outrem. Esta personagem de corpo frágil e dilacerado, um “quase-igual” a Pessoa, é retratada no filme como alguém que está cada vez mais angustiado, e quando parece que atinge o sossego, fica de novo desassossegado. Ajudante guarda-livros que trabalha num sufocante escritório, filmado no Arquivo Histórico Militar em Chelas com corredores de 80 metros de prateleiras com infinitos documentos das vidas de muitos portugueses.
Um filme de fragmentos tal como a escrita de Bernardo Soares, que se passa numa Lisboa abstracta, nocturna e espectral, cenário de um espaço que permite a circulação de alguém que não é igual a Pessoa, mas está muito perto segundo Botelho.
“Quis mudar a geografia de Lisboa porque Pessoa foi o maior viajante do mundo sem nunca ter saído da cidade. A sua escrita tem muitos níveis: psicanálise, psicologia, sociologia, textos de direita, de esquerda, anárquicos. É a fragmentação de um mundo sem centro, tal como o mundo de hoje. E isso é uma premonição em relação ao futuro.”
João Botelho ,Julho de 2010
in site oficial do Filme do Desassossego
Foi este o filme que vi. Ler este texto fez-me revisitar a sala de teatro.bom trabalho.
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