terça-feira, 24 de maio de 2011

A cidade adolescente

A CIDADE ADOLESCENTE

CRISE DE IDENTIDADE

O filme de Teresa Villaverde, Os Mutantes de 1998, é um filme cruel e agressivo, que explora uma revolta e uma inadaptação à sociedade.

Esta realizadora dedica grande parte dos seus filmes, a personagens jovens, sobretudo jovens mulheres. Enquadra-se numa geração, da década de 90, de cineastas que escolheram personagens de crianças ou adolescentes para protagonizar os seus filmes, explorando a forma como estes desenvolvem a sua subjectividade.

Jovens com oportunidades reduzidas, em fase de adolescência, em estado de crise de identidade, já de si difícil, que é agravada por terem famílias disfuncionais, serem explorados ou abandonados em instituições juvenis. Estas personagens provêm de subúrbios marginalizados de imigrantes africanos em Lisboa, do interior do país ou até das antigas colónias portuguesas onde nasceram.

Este filme desenvolve uma problemática baseada na construção de identidade que pode ser facilmente transferida para a nossa jovem democracia por também ela estar a passar por uma crise de identidade. “Alegoria do adolescente” como escreve Carolin Ferreira no livro O Cinema Português através dos seus Filmes, que se reflecte numa “perspectiva pessimista sobre um Portugal pós-colonial com enormes dificuldades em se tornar adulto?”

“Ou seja, será que os realizadores simplesmente denunciam a incapacidade de formação na jovem democracia portuguesa ou oferecem soluções? Será que os filmes procuram discutir a necessidade e possibilidade de intersubjectividade como forma de construção identitária? Ou seja será que os filmes desenvolvem uma imagem de Portugal como adolescente indefeso ou estimulam identificações complexas com os mais vulneráveis no sentido de lidar com a crise? O filme Os Mutantes de Teresa Villaverde é certamente um dos exemplos mais interessantes e complexos neste contexto por causa da sua abordagem das estratégias de intersubjectividades dos adolescentes num mundo pós-colonial.”

Carolin Overhoff Ferreira

O cinema Português através dos seus filmes

Um filme em crescendo e sem tréguas, aumentando a tensão de plano para plano. O espaço e o tempo do filme são consagrados por inteiro à errância das personagens principais, todas elas em sucessivas fugas.

Em Lisboa, é na Estação do Rossio, local de passagem e de afluxos anónimos, que é feito um assalto por um jovem que se refugia num comboio e viaja suspenso de cabeça para baixo contra os carris. Este é um dos planos de Teresa Villaverde em que a imagem de Lisboa nos é devolvida ao contrário. Ao longo do filme essa reflexão repete-se.

As instituições de reinserção social, por onde estes jovens passam, são uma prisão e um refúgio ao mesmo tempo.

O longo plano sobre o muro dos graffitis, a que sobrepõe em off a leitura baixinha das inscrições nele cravadas, dá conta do tumulto e desespero real dos jovens que são obrigados a passar por estes lugares abandonados à solidão que é retratada ao longo de todo este filme.

O Hospital onde Andreia repousa, após a sua tentativa de suicídio por descobrir estar grávida, é escuro e vazio. Um porto de abrigo temporário, como todos os outros por onde passam as personagens deste filme. A rapariga sonha ou imagina que está morta e é um fantasma que deambula pelos corredores à procura de um cigarro - esse estado parece deixá-la aliviada, sentindo-se livre e feliz por já não ter todo o peso da responsabilidade que carrega na sua barriga e que não compreende.

Na mesma cidade, dois rapazes (Pedro e Ricardo) fugidos de uma dessas instituições, em busca de dinheiro para sobreviver nas ruas, acabam por ser levados para uma moradia onde vivem uns alemães que supostamente fazem um acordo para os filmar, mas que, mais tarde, Ricardo percebe da pior forma fazerem parte do mundo obscuro da pedofilia que se revela um problema grave em Lisboa. Esta sequência faz lembrar o escândalo da Casa Pia e lugares da cidade, como o Parque Eduardo VII, onde há muito poucos anos crianças e adolescentes como estas personagens se prostituíam.

O dinheiro que os dois rapazes ganham nesse amargo episódio serve para gastarem em espaços de diversão nocturnos de Lisboa e em salas escuras e sobrelotadas de máquinas de videojogos violentos, onde se ouve uma delas a dizer “I am the future”, enquanto um grande plano da cara de Pedro é projectada. Que futuro é esse que a realizadora tenta mostrar, através destes jovens que estão à deriva na vida, sem família, sem um adulto responsável pelo seu desenvolvimento, estão completamente desamparados e rebelam-se contra uma sociedade que os maltrata.

O local de encontro e convívio de várias crianças de rua é nas Docas, sob a ruidosa Ponte 25 de Abril. Ali brincam, atordoam-se com drogas e sentem um bocado de calor humano entre semelhantes. Ali apoiam-se e sentem-se à vontade. Nesta cena vemos o Tejo reflectir uma Lisboa ao contrário, aquela Lisboa onde as crianças andam livres á deriva e sonham com o seu ídolo de futebol, esquecendo todos os terrores da realidade do dia-a-dia que lhes nega um “futuro brilhante”.

A noite vai longa e Andreia procura o pai do filho que espera por um bairro de lata, onde só encontra mais fogo para atear a sua raiva e acaba por sucumbir ao seu estado “embaraçado”. Este local lembra a decadência e podridão que existe mesmo no coração de Lisboa, que tão bem mostram os filmes de Pedro Costa.

Essa noite, ou outra qualquer semelhante, é vivida intensamente pelos rapazes na antiga Feira Popular, nessa altura ainda a funcionar, situada em Entre Campos. Um lugar que se transforma numa armadilha gigante com luzes incandescentes quando Ricardo e Pedro, após pernoitarem debaixo daquelas máquinas giratórias que intensificavam a sua “trip”, são apanhados quando o maquinista os descobre e chama a polícia, que os leva de volta à sua “prisão” temporária (centro de acolhimento).

Numa das cenas finais, numa estação de gasolina, um espaço de passagem e impessoal, Andreia dá à luz, numa casa de banho pública, sem ninguém se dar conta. É o momento mais alto de tensão do filme. Teresa Villaverde faz os espectadores observarem as personagens de muito perto e durante muito tempo até ao limite do suportável.

As ruas de Lisboa são o espaço predilecto destas personagens, que deambulam livremente por becos e miradouros, experimentando tudo intensamente no limiar do perigo e da vertigem.

“Andreia, Pedro e Ricardo não aceitam as coisas como elas são, não se encaixam em lado nenhum. Nunca se rendem, estão sempre à procura de alguma coisa (…) alguma coisa dentro delas está sempre prestes a explodir. Vivem com a necessidade constante de vertigem, de deslocação, de movimento. Recusam-se a aceitar o lugar que lhes foi imposto mesmo antes de serem capazes de escolher fosse o que fosse. Não aceitam esse lugar e é por isso que não o ocupam. Mas não têm nenhum outro“

Teresa Villaverde

Andreia, Pedro e Ricardo são confrontados com exploração, consumismo inalcançável e famílias disfuncionais. Estas dificuldades em construir uma identidade própria estão também relacionadas com o legado do colonialismo: o jovem que está mais exposto ao perigo é o de descendência africana, acabando por ter um final trágico. Teresa Villaverde sugere neste filme que a identidade europeia, como uma democracia moderna e progressista, que Portugal procura alcançar, é inatingível para os jovens marginalizados.

São vários os planos da realizadora em que a imagem de Lisboa nos é devolvida ao contrário, o rapaz que está de cabeça para baixo na carruagem do comboio ou quando a cidade é reflectida nas águas do Tejo inundada pelas suas luzes. A cidade invertida ou uma realidade distorcida pela mentalidade imatura das personagens? Uma armadilha, que à partida parece o refúgio ideal, uma capital repleta de rebeldes aventuras urbanas, mas essa falsa liberdade acaba por ser cobrada com o peso pesado da responsabilidade, que a sua tenra idade ainda não lhes permite possuir, e que os faz cair numa espiral descendente com um provável desfexo trágico.


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